quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Feministas de tanque e de fogão

Prometo não sociologizar no blog, e tentarei cumprir, mas divido algumas das minhas crises de tese com possíveis leitores. Para tanto, é necessária uma breve apresentação de minha proposta de pesquisa.

O trabalho prevê uma análise dos estabelecimentos de lazer erótico na cidade do Rio de Janeiro. Não se trata de uma pesquisa sobre prostituição. Apesar de reconhecer a importância de estudos do gênero, somam-se vários nas prateleiras das universidades e, de fato, atenho-me a formas lúdicas de exercício público da sexualidade (mesmo que em espaços privados), bem como a práticas sexuais propriamente ditas onde as quatro paredes têm fronteiras um tanto fluidas. Explico melhor.

A prostituição introduz questões muito específicas, dada a monetarização da relação, uma reciprocidade mediada pelo dinheiro que implica no estabelecimento de regras, bem como hierarquias, específicas à relação. Meu campo se limita, por enquanto, a casas de suingue e clubes de strip-tease. Estabelecimentos de lazer de caráter singular, dado o destaque de práticas eróticas como conteúdo para essas formas de sociabilidade.

Enfim. Há quem classifique como análise da putaria, há quem classifique como temática de pesquisa menor e, portanto, “menos científica”, há quem considere estratégia de justificação para que eu freqüente esses espaços e há quem tome isso como desculpa para piadinhas ingratas ou cantadas baratas. Fodam-se todos, no fundo é só inveja. Não que seja o melhor trabalho do mundo, mas porque eu tenho um puta tesão em desenvolvê-lo. Entenda como quiser. (ps.: a revisão de ortografia do Word sugere que eu substitua o termo por “excitação”, mas não creio que seja plausível, eu quis dizer “tesão” mesmo)

O fato é que venho considerando a possibilidade de me ater aos clubes, em favor de um melhor desenvolvimento de um ponto nodal que vem se delineando como questão de pesquisa e fonte de discussões entre meus interlocutores.

Venho ouvindo com freqüência, sobretudo de supostas feministas, que “isso tudo não quer dizer nada quanto ao exercício da sexualidade dessas mulheres”, que “no fundo, nada mudou”, de fato, que a freqüência a esses espaços não implica em uma revolução sexual ou reais transformações das relações sexuais de gênero. Numa dessas conversas, ouvi que “essas mulheres que vão a casas de suingue são umas babacas, que vão lá só para satisfazer aos seus maridos”, que “se submetem a isso por vontade deles”. Nem preciso comentar que a última frase denota a percepção de que o sexo grupal deve ser visto necessariamente e por todos como uma atividade degradante e deplorável.

(suspiro) (meu, claro)

Esses argumentos são uma tentativa de deslegitimar a minha proposta de pesquisa?
Sim, porque ninguém aqui está defendendo tratarem-se tais estabelecimentos de provas de uma total superação da polarização homem-mulher, ou pistas de uma onda libertina (no sentido sexual do termo), nem que essas mulheres sejam ninfomaníacas ensandecidas que saem de casa em busca de homens para devorar. Por outro lado, essa poderia sim ser a minha hipótese, é por isso que se faz pesquisa (e de campo): para observar na prática como essas relações são estabelecidas e confirmar ou derrubar hipóteses, porque se todas essas afirmações fossem óbvias pra mim, não perderia meu tempo lendo, entrevistando, observando. O incrível é que essas brilhantes “sacadas” foram desferidas por pesquisadores e, como podem ver, ainda bem embebidos da “sabedoria” do senso comum, para a qual a pesquisa, ao menos que seja biológica ou tecnológica, é sempre irrelevante.

O que mais me incomoda é a capacidade de algumas feministas extremistas em sempre renegar às mulheres o papel de sujeitos apáticos, imbecis e incapazes de racionalizar suas próprias realidades ou relações. Segundo essa visão, estamos fadadas a sermos eternas vítimas da ação imperiosa dos homens, grandes filhos da mãe (experiências recentes me fizeram eliminar o termo “puta” de xingamentos degradantes, depois falamos nisso).

Caralho, cara!

Então a gente vai à casa de suingue para agradar um homem; a gente acha o William Bonner gato, apesar de babaca, por nos submetermos ao ideal de virilidade em torno da figura do homem; a gente pesquisa sobre sexo para positivar a freqüência a espaços de exercício da sexualidade em frente aos nossos interlocutores homens...
Então pra que ser feminista? Compra logo um fogão turbinado, dá o golpe da barriga e beija a porra desse homem! Que, aliás, deve ser bom pacas, pra conseguir tudo isso da gente... (se alguém o conhecer, por sinal, me envia o telefone... apenas para experiência de campo, claro!).

Se essa suposta transformação sexual já tivesse acontecido, não estaríamos aqui, na internet, mas exercitando nossas sexualidades, in lócus. E tal utopia, no meu humilde repertório de dados sensus comuns, está muito longe de acontecer como idealizam meus queridos críticos. E essa sequer é a questão. Meus iniciais dados de campo confirmam se tratar tais práticas de formas de exercício da sexualidade (mesmo que lúdicas) que estão inseridas em práticas de conjugalidade e não de pluriparceria. Os clubes são freqüentados por mulheres cujos namoridos esperam apenas o término do show para entrar na boate e encontrá-las e muitas das garotas solteiras que lá podem ser encontradas tendem a abandonar a freqüência ao clube assim que iniciam um novo romance.

No fim das contas, é ainda necessário apreender até que ponto a ida ao clube não se apresenta para suas freqüentadoras muito mais como uma prática cômica do que erótica.
A questão fundamental é que elas não vão a um show de stand up comedie, nem assistir a um filme dos três patetas, bem como poderiam ter escolhido um bar, onde os caras são bem menos atléticos, mas talvez muito mais acessíveis para a atividade sexual do que os gogo boys.

Da mesma forma as mocinhas que se aventuram com seus parceiros em casas de suingue. Elas transam com outras mulheres pra excitar os maridos, mas não podem sentir-se pessoalmente excitadas durante o ato? Será que não curtem vê-lo com outra ou a possibilidade de transarem com os parceiros de outras? Pressupor a impossibilidade de qualquer uma dessas questões ter uma resposta afirmativa é tão machista quanto achar que eu preciso pedir permissão a um homem pra trabalhar.

O que realmente importa, na minha opinião e como questão de pesquisa, é o fato de que formas eróticas de lazer vêm se legitimando em determinados contextos metropolitanos, passam a integrar modos de vida que se inserem em formas específicas de apreensão e apropriação do espaço público. A questão nunca esteve relacionada à identificação de mudanças ou permanências, até mesmo porque neste tipo de análise maniqueísta de gênero nós sempre seremos vistas como objetos de dominação e nunca como sujeitos de ação propriamente ditos. Se o caminho fosse esse, as cartas já estariam na mesa: as posições sexuais encenadas durante os shows de strip-tease apenas corroboram os papéis sexuais ativos e passivos cabíveis a cada um dos sexos, tradicionalmente; mesmo a participação das clientes durante as performances se dá como coadjuvantes de um jogo arquitetado e direcionado pelos dançarinos; no fundo as praticantes destas formas de sexualidade são também reprodutoras de uma ideologia que valoriza a família como valor, em que a conjugalidade monogâmica heterosexual continua a imperar. E daí?
Enquanto sujeitos posicionados, participamos de um projeto coletivo inconsciente de reprodução de valores, mas me nego a pressupor que sejamos apenas peças de um grande tabuleiro, fadados a mudar de personagem e manter o mesmo movimento combinado. Eu não sou prima do macaco e nem objeto de um projeto demoníaco de submissão feminina impetrado por homens. E de que adiantaria pensar assim se o mesmo pensamento pressupõe que eu só serei feliz quando submetida ao poder de alguém?

No fim das contas, como boa antropóloga por vocação (o que não significa que eu seja boa enquanto tal, mas há esperanças), o que poderia me importar quanto à percepção dessas práticas enquanto transgressões ou retrocessos são os significados e identidades possíveis de serem legitimados por esses atores entre seus pares. No mundo em que eu vivo, ir a um show de strip-tease não é o mesmo que ir ao cinema. Algo me diz que para essas mulheres tais práticas são apreendidas, sim, como parte de um comportamento e percepção de si muito singulares. Devassas ou não, elas já não se vêem como seres assexuados, só isso, na minha percepção, já pode ser visto como uma puta (agora como um adjetivo positivo) transformação!

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Os amigos e a onça

Amigos servem, acima de tudo, pra sacanear a sua vida. Eles te sacaneiam, não necessariamente num sentido positivo (partindo do pressuposto que sacanagem, por si só, sempre o seja de alguma forma), quando mentem para te convencer a ir àquela Big Party na “área vip” do podrão da esquina. Eles te sacaneiam também quando têm a brilhante idéia de te empurrar aquele solteirão com fama duvidosa – dúvida esta compartilhada por você após constatar que ele ama musicais e tem comentários a fazer sobre a última coleção do Alexandre Herchcovitch.

Os meus amigos me ferram sempre. De fato, acho que a maioria das minhas ex-amizades (não que tenham se tornado INI, mas que deixaram de ser simplesmente por deixarem de estar) foram conseqüências diretas de falta de energia sacaneagética. Sim, essa eu acabei de inventar. Sabe aqueles seriados acéfalos que sempre mostram adolescentes envergonhados do comportamento de seus pais quando os apresentam para alguém? Eu sei exatamente como sentir-se assim com relação aos amigos... E uma amiga em especial adora exercitar esse sentimento em mim. O mais nada a ver dos carinhas aparece na minha reta com aquela pérola “aonde você pretende criar os seus filhos?” (juro, existe sem noção desse nível – e algo me faz acreditar que haja quem goste) e ela saca uma das clássicas: “pô, cara, cuida bem da minha amiga ae...” (CUIDA?!?!?!?!? De novo: CUIDA?!?!?!?!!!) ou “oh, ela é foda, hein... mas eu deixo!” (tipo: essa faz parecer que ela é o meu caso lésbico). Se eu estivesse absolutamente desesperada por um homem, já seria demais. Fugindo de qualquer assertiva mais engajada então, imagina! Numa dessas eu ainda estrangulo ela até a morte!

Amigos, de verdade, te fodem, cara! Dizem justamente aquilo que você não quer escutar, e quando mais precisa ouvir. Não coincidentemente, quando mais se sente vulnerável. Amigos conhecem seu ponto fraco e são eles que te fazem chorar ao revelar o que todo mundo já sabia. Mas isso só os verdadeiros amigos fazem, e tá na moda não fazer. Tá na moda não ser amigo, não ser fiel, não ser sincero, não ser honesto...

Voltemos.

São eles também que te informam que aquele vestido mara que você comprou numa liquidação bárbara está ultra fora de moda. Isso dói, sabia? Ou então que seu cabelo está tão grande que você mais parece a mãe d’água. Você acaba cortando o cabelo (não porque é Maria vai com as outras, mas por uma questão de estilo) e descobre que quem é a mais nova mãe d’água?!? Ah, a inveja... pelo menos ajuda a filtrar os verdadeiros amigos...

Para não dizer que eu não falei das flores, são eles também que inventam aqueles apelidos escrotos que, na melhor das hipóteses, eles vão se lembrar para a vida toda. Na pior, tomam conta do seu corpo, te abduzem e assumem completamente a sua consciência e identidade. O namorado da minha prima atende por Peloto. Sem comentários.

O cara que inventou a máxima “dá dinheiro, mas não dá intimidade” tem exatamente a mesma espécie de amigos que eu. Nenhum, absolutamente nenhum aspecto da sua vida passa despercebido e, naquele grupinho mais íntimo (nesse período de Copa mais conhecido como o “grupo da morte”, também chamado de “tropa de elite”, dependendo da moda), você sequer precisa se dar ao trabalho de divulgar informações. Você pega aquele gostoso da academia e pronto, todo mundo já vai saber na manhã seguinte. O mesmo com relação aos foras que você leva, às derrotas que você pega bêbada no fim de noite (ou nem tão bêbada...). E aí a coisa fica incontrolável ao ponto de você saber até quando o sujeito está com prisão de ventre, um horror! E, se a constipação for sua, não conte para nenhum deles, ou todos os outros também ficarão sabendo.
Meus amigos me ajudam a cometer erros e também morrem de rir relembrando todos eles depois que a poeira abaixa. Eles abrem a geladeira reclamando que falta refri, questionam o tamanho da lixeira do banheiro e ficam absolutamente ofendidos caso a gripe resolva me pegar no dia da festa. Eles colocam o pé sujo na cama, comem na cama, quebram a cama... (ressaltando que eu moro numa quitinete) e tiram absolutamente tudo do lugar. Inimigos são desnecessários, com amigos se pode ter tudo o que há de bom e tudo o que há de melhor na vida. Salve, salve a sacanagem!

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A previsibilidade da história da carochinha

Os homens são absolutamente previsíveis, assim como as mulheres. A gente sempre sabe exatamente qual é o defeito do infeliz e sempre insiste em “ver as coisas por outro ângulo”, favorecendo a eles, claro. Todos os sinais estão lá, de fato, mesmo no auge da paixão, aproximadamente entre o segundo e quinto meses de relacionamento, quando há relacionamento, podendo se adiantar ou adiar, de acordo com o arrebatamento total, mas não variando muito em duração, a não ser que variem as condições objetivas com que é vivenciada a paixão. Enfim, o auge da paixão está lá, os problemas já foram delimitados.

A gente sempre sabe o que esperar, mais insiste: “Ele vai mudar”, dizem as mais inocentes; “ele está mudando”, as mais otimistas; “vamos ver no que dá”, as que se pensam espertas... E lá vamos nós todas, segundo nossos variantes estágios de carência, aturar mais um entre os previsíveis, com a esperança de que estejamos erradas, ou que o amor nos permita superar a insatisfação.

Eu, pessimista que só, não consigo imaginar que alguma mulher consiga passar a vida ao lado de um homem sem ser capaz de superar a insatisfação (porque sim, ela existe!). Tranqüilo, eu também tenho defeitos, quem sabe um dia adquira esse potencial e esteja com uma pessoa capaz do mesmo. Mas olha que ele vai ter que aturar muito!

Voltemos. Não digo que todos os homens sejam iguais, quem pensa isso não aprendeu absolutamente nada entre seu penúltimo relacionamento e o último, ou o atual, enfim, e acabou se envolvendo com outro da mesma espécie com a esperança de que este houvesse passado por alguma mutação. Os meus não são iguais. Tudo bem, no meu histórico há uma recorrência relativa entre algumas características aqui, outras ali, variando as combinações, mas julgo que a explicação para tanto está muito mais na análise freudiana de minhas neuroses do que numa supostamente homogênea natureza masculina. De fato, afirmo que eles são, por natureza, absolutamente diferentes em seu repertório de defeitos.

Eu não sou uma pessoa sincera, eu sou realista, o tipo de amiga que ninguém procura, a menos que deseje ouvir a verdade. A questão é que percebo que mulheres desesperadas desejam ouvir a verdade, sobretudo acreditando ardentemente que a verdade coincide exatamente com aquilo que desejam ouvir. Não preciso dizer que esse nunca é o caso. Bom, nessas ocasiões meu diagnóstico não costuma ser muito otimista. Mulher que reclama é mulher insatisfeita e aí, não importa a origem do problema, mas única e exclusivamente se se está disposta a aturá-lo. Ponto. Nosso defeito é criar ilusões que, não raro, independem absolutamente da realidade ou sequer do esforço do infeliz. Todo ano, no dia do aniversário de namoro, ele te decepciona. Todo ano você chora, fica inconformada. Ele vê. Se diz que vai mudar ou não, ACORDA (!!!). Ou você pára de chorar e adooora aquele ursinho brega que ele comprou para justificar o boteco vagabundo onde foram comer pão com lingüiça ou dá um bico na bunda dele e arruma um vegetariano que cozinhe bem, pelo menos. E não espere receber de presente um carro zero quilômetro perfeito com um laço vermelho de embrulho, afinal, isso não é novela do Manoel Carlos, né?

Nessa história há quem não consiga acreditar que ele não a ama mais, assim como havia dito, porque, afinal, ele ligou, estava com saudade!

Uau!

Segredinho: homem é um bicho egoísta, não é preconceito da minha parte, mas fato sociologicamente comprovado. Ao contrário da mulher, que é tradicionalmente socializada para voltar-se às necessidades dos outros, os homens são tradicionalmente socializados voltarem-se exclusivamente para si, uma questão de divisão do trabalho, que ferra a gente, mas delineou-se dessa forma, só nos resta resistir. E mesmo a sogra mais transgressora não conseguiu isolá-lo da sociedade machista em que vivemos, então não se iluda.

E, para não dizer que eles não tenham capacidade de se superar, aí vai. Sempre há esse elemento surpresa do qual eles se utilizam com uma crueldade quase mórbida. Ele realmente ligou apenas porque queria ouvir a sua voz, o que realmente não significa que ele te queira, muito menos como amiga. Na melhor das hipóteses (pra você também, se souber se aproveitar disso sem ilusões), ela está doidinho por um dejá vu. Divertido, não? E, mesmo que tenha mentido sobre não te amar, por insegurança, sadismo ou orgulho, o fato é que ele disse e nós sabemos que nada dói tanto. Sendo assim, o odeie só por isso mesmo, gata. Não espere que ele pense em não te procurar para evitar o seu sofrimento, em dar o braço a torcer para viver o maior amor das suas vidas... blá, blá, blá, blá, blá, blá.

Nem estou sendo cética, algumas dessas coisas até acontecem, mas sempre acompanhadas de mágoas que precisam ser superadas por elas envolvendo traições, mentiras, os amigos-da-mesma-laia dele... Mas, se ele não te assume, a culpa é sua, claro! Afinal, você não apresentou o Rick, o amigo gay com quem esteve tomando sorvete, pra ele, o permitindo pensar que havia sido traído, marcando eternamente o coraçãozinho frágil dele e justificando, portanto, o caráter “aberto” de seu relacionamento mesmo quatro anos depois do ocorrido.

O problema, o nosso maior problema, não é a jornada dupla, a desigualdade de renda ou o vagão do metrô lotado, mas nossa insistência infindável em acreditar em contos de fadas.

Inclusive, seu príncipe tem irmão? Mas nada de compromisso...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Não me peça para ser a razão da sua vida!

Não me peça para ser a razão da sua vida. Não me sufoque com a responsabilidade pela sua felicidade. Nunca, eu me nego! Nem espere ser o objetivo da minha. Objetivo, razão, felicidade, nem nada parecido. A minha forma de amar está subordinada ao meu apreço por mim mesma, não como ser superior e irretocável, mas como o único ser que me compete, e me preenche, e me acompanhará, independente de qualquer coisa, por toda a vida.
Pode parecer óbvio para uns, ou absolutamente individualista para outros, mas me apego à primeira opção. É óbvio, apesar de não o ser. Só posso tomar como objetivo da minha vida viver. E viver a minha própria vida, ao menos enquanto nenhuma outra vida for dependente da minha (e quanto à isso não há pressa, apesar de haver uma certa “necessidade”).
Não espere desespero, dependência ou a crença numa eternidade que se sobreponha à satisfação. Sim, sou hedonista. Perdi completamente a crença em relacionamentos únicos, insubstituíveis e sufocantemente duradouros. A durabilidade que busco é a dos sorrisos ou, na verdade, a das gargalhadas. Não que a vida tenha que ser apenas felicidade, mas os momentos de tristeza é que devem ser exceções à regra. E para que tanto assim o seja basta apenas que assim o vejamos.
Quanto ao dogma de uma companhia por toda a vida, reconstruímos o ocupante deste cargo sempre que nos damos conta de que não era pra toda a vida, então para que fingir que ainda acreditamos no dogma? Qual o sentido do próprio dogma, sua necessidade? A questão é que pra mim essa necessidade não há. Afinal, mesmo os amigos sobre os quais depositamos tanto investimento (e esses foram muitos) nos deixam escapar sem que haja rompimento, traição ou desafio à confiança. E não é possível pressupor entrega única, eterna e livre de inconstâncias sem a supressão da mais ingênua e pura liberdade de se ser quem se é. Ao mesmo tempo, se assim não se for, como é possível se dar? Por fim, sejamos um apenas a partir da certeza de que sempre seremos dois.
Que o amor não exija tanto, que não exija mais do que mais amor, até que a falta de amor nos separe, e pronto! E, mesmo que o excesso venha a nos unir, repito em citação: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!” Vinícios de Moraes bem que sabia!

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A ciência da Palavra

Eu nunca fui capaz de apreender plenamente a ciência da palavra. Digo a palavra não apenas como uma ferramenta interceptora de mensagens, mas "a palavra". A palavra como a cristalização de uma verdade nada científica, mas plena de pureza de sentido no que se refere à veracidade que lhe é imputada por àquele que diz. A verdade como crença, como um dogma pessoal daquele que crê e é dito, publicizado, sem medo ou pudor. A palavra como veículo, portanto, daquilo que chamam de sinceridade. Ou simplesmente da falta do que dizer, mas que é dito e, portanto, fato.
Eu confesso, sou absolutamente analfabeta na ciência da palavra. Toda a classe que possa prezar se perde na menor tentativa de exercer a nobre atividade de dizer.
Dizer para mim é um desafio constante e quase aterrador: É agora, posso falar? Não que seja tímida, mas justo pelo contrário. Quando há o que ser dito, me vem como uma força absolutamente autônoma e incontrolável que, mesmo quando calada, permanece dita em potência.
Qual o verdadeiro sentido da piada quando o sentido com que foi proferida é revertido pela falta de tato com os sentidos das palavras? Palavras aqui no sentido limitado, comumente apreendido, como aquele que pode ter a manga da camisa ou àquela fruta no pé. Enfim.
A verdade é que a verdade não deve ser dita. É fato. Quero dizer, deve. Mas não deve, na verdade.
Ao mesmo tempo, como pode haver virtude no calar se o calar nada mais faz do que negar a verdade que se constrói como pilar de nós mesmos? Nós não somos feitos de nada senão daquilo que dizemos às vezes sem necessitar de palavras. Daquilo que reflete o que pensamos e, sendo assim, o que somos. Não? Se “Penso, logo existo”, sim!
Calar, na minha já declarada e nada humilde ignorância, não seria o reverso à simples existência, senão de si, mas da razão que há em ser, do exercício do que se é? O não dito diz, isso eu entendo, mas e o dito sem verdade? Como se pode entender o que é dito se ele por natureza não deve dizer, ao menos não “de verdade” o que deve (dever aqui entendido como necessidade e não obrigação) ser dito? E como se pode ser sendo ao dizer o que não é pelo simples exercício do não dizer tudo o que fala dentro de si?
A verdade, ao que entendo, é que não se deve necessitar dizer, mas dizer simplesmente para não calar. Por via das dúvidas, é melhor dizer algo que alguém já disse e, de preferência, ninguém que diga nada importante. E quanto à verdade, não as tenha, simplesmente recorte e cole (ou copie e cole, se for menos audacioso). Deve-se ser sincero apenas até o ponto em que a sinceridade não seja tão sincera assim, mas sem transparecer a falta de sinceridade nem evidenciar sinceridade estrita. Vai entender.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Roberto Pompeu de Toledo O milagre do sorinho e outros milagres

"A doutora Zilda Arns fez tudo ao contrário de como costumam ser feitos os programas de políticas públicas no Brasil. Não chamou o marqueteiro, como providência inaugural dos trabalhos. Não engendrou uma generosa burocracia, capaz de proporcionar bons e agradáveis empregos. Não ofereceu contratos milionários aos prestadores de serviço. Sobretudo, não anunciou o programa e, com o simples anúncio, deu a coisa por feita e resolvida. Milagre dos milagres, Zilda Arns, que morreu na semana passada, no terremoto do Haiti, aos 75 anos, realmente fez. Se o Brasil teve uma redução significativa nos níveis de mortalidade e desnutrição infantil, nas últimas décadas, isso se deve em primeiro lugar à Pastoral da Criança, criada e administrada por ela, com apoio da Igreja Católica, e aos exemplos que semeou.

"O índice de mortalidade infantil no Brasil andava pelos 82,8 mortos por 1 000 nascidos vivos, em 1982, quando Zilda foi convocada pelo irmão, o cardeal Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, a pôr sua experiência de médica pediatra e sanitarista a serviço de um programa de combate ao problema. Hoje está em 23,3 por 1 000. Nas áreas com atuação direta da Pastoral da Criança - são 42 000 comunidades pobres, espalhadas por 4 000 municípios brasileiros - está em 13 por 1 000. O que mais espanta, na obra de Zilda, é o contraste entre a eficácia dos resultados e a simplicidade dos métodos. Nada de grandiosos aparatos, nada de invencionices. A partir da gestão do hoje governador José Serra no Ministério da Saúde, ela passou a contar com forte apoio governamental. Mas suas ferramentas básicas continuaram as mesmas:

"• O sorinho e a multimistura. O soro caseiro feito de água, açúcar e sal foi o grande segredo no combate à desidratação, por muito tempo a maior causa de mortalidade infantil no Brasil. A multimistura feita de casca de ovo, arroz, milho, semente de abóbora e outros ingredientes singelos foi, e continua sendo, a arma contra a desnutrição. Zilda Arns era contra a cesta básica. Achava-a humilhante, para quem a recebia, e de presença incerta. Optou por ensinar como proporcionar uma boa dieta com recursos escassos.

"• A multiplicação da boa vontade. A ordem era ensinar e fazer com que os que aprendiam passassem também a ensinar. A Pastoral da Criança conta hoje 260 000 voluntários.

"• O trabalho e a persistência. Se fosse só ensinar a tomar o sorinho ou a multimistura e ir embora, seria repetir outro padrão das políticas públicas à brasileira. Cabe ao voluntariado fazer uma visita por mês às famílias assistidas. Um instrumento imprescindível nessas ocasiões é a balança, para medir a evolução da criança.

"• A escora da índole feminina. Noventa e dois por cento do voluntariado da Pastoral da Criança é constituído por mulheres. Uma tarefa dessas é séria demais para ser deixada por conta dos homens. A mulher é muito mais confiável quando se mexe com assunto situado nos extremos da existência, como são os cuidados com o nascimento e a morte, a saúde e a doença.

"Zilda Arns conduziu-se por uma estratégia baseada na sabedoria antiga e na vontade de fazer, nada mais do que isso. É paradoxal dizer isso de uma pessoa tão religiosa, mas não houve milagres na sua ação. A menos que se considere um milagre a presença dessa coisa chamada amor como motor, tanto dela como das pessoas em quem ela inoculava o mesmo vírus. Vai ver, ela diria isso. Vai ver, isso foi importante, mesmo.

"O escritor Saul Bellow conta que, certa vez, passeava de bote num rio infestado de jacarés quando começou a ficar apavorado. Não era tanto a morte que o apavorava. Era o necrológio: "Morreu ontem, devorado por jacarés…". Zilda Arns está condenada ao necrológio: "Morreu de terremoto, no Haiti". Não é esdrúxulo como ser devorado por um jacaré. Também não é raro como cair no poço do elevador, como a atriz Anecy Rocha, irmã de Glauber, ou ser tragado pela boca do Vesúvio, como o republicano histórico Silva Jardim. Mas é raro para um brasileiro, em cujo território não ocorrem terremotos de proporções mortais, e chocante como são as mortes inesperadas, provocadas por acidentes. Zilda Arns, como Anecy Rocha e Silva Jardim, morreu em circunstâncias do tipo que nunca se esquece. Mas, também, em circunstâncias que lhe coroam a vida. Estava no Haiti para, em contato com religiosos locais, propagar a metodologia da Pastoral da Criança. Morreu em combate."

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010